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A moda de guerra

Todos sabemos que a moda transcreve uma realidade já amplamente analisada sob as perspectivas: jornalística, estética, sociológica e psicológica.

Como sempre, através dos séculos reflete a sociedade e suas tribos, as comunidades e suas castas, suas classes e o que é (ou não) o senso-comum, o ordinário e o extraordinário. Uma linguagem muda, mas que não é cega e nem surda, sendo extremamente visual.

Por isso mesmo muitas vezes fio condutor de “transgressão” e da “quebra de tabus”.

A moda, geralmente tratada como frivolidade, pode revelar sua potência como índice de acontecimentos históricos, às vezes não detectáveis facilmente pela leitura linear dos fatos.

As necessidades primárias, implicações econômicas e políticas estão lado a lado com o “estilo de vida” e com a mentalidade de uma época, criando muitas vezes uma abordagem moderna ou tradicional, que envolve as questões coletivas, reflexos e críticas à moda, e a porção de subjetividade, fundamental, quando a vemos como participante das construções de individualidades. Lida com anseios, sonhos, fantasias, receios, amarguras, ilusões, projeções e cópias fiéis de sucesso ou fracasso.

Roland Barthes, e sua semiologia da moda, expressa a existência de uma língua do vestuário, postulada em escritores como Balzac ou Proust.

A roupa não só vive de função, mas informa, contesta (e com isso significa), sendo um fenômeno semiótico. O autor analisa o consumo, e o porquê desse poder persuasivo, e, por outro lado, debruça-se também sobre a estrutura e o “jogo” de significados desse próprio discurso. O livro de Barthes, “Sistema da Moda” (1967), exerceu um papel determinante nessa história do vestuário e da indumentária. Como tese de doutorado – que seria defendida sob a orientação de Claude Lévi-Strauss – o livro expressa, antes de tudo, o exercício de um rigor analítico e filosófico do ponto de vista da semiologia do objeto e seu desejo projetado. Ou refletido. A língua do vestuário como um novo idioma a ser decifrado.

Essa disposição poética pode ser constatada pelas descrições frequentes e detalhadas de vestuários encontradas na literatura. E as muitas citações que referendam “dialogismos”, e um sentido profundo de “agoridades” (parodiando a poética de Haroldo de Campos) para o portrait de um mundo, ora decadente, ora urgente, ora burguês, opulento e vitorioso. E por diversas vezes, misterioso e indecifrável.

Todavia, após Duchamp (1887 – 1969) levar um urinol para um espaço consagrado da arte, declarando que aquele objeto em si é arte; depois de ter usado um manequim feminino com colete, sapatos masculinos e ícones de vestimentas masculinas para questionar o deslocamento de sentidos; depois de as vanguardas artísticas do início do século 20 proporem o rompimento da diferenciação entre arte e cotidiano, temos muitas e várias citações nas artes plásticas. Vemos também a obra de Joseph Beuys, Die Haut [A pele], sendo rotulada como “macacões de feltro” ou “feltros”. Ao deparar com a provocação de “A pele”, de Beuys, as mangas, as pernas e o próprio feltro fazem na mente do espectador a leitura de uma indumentária ao invés de uma obra de arte. Ou seja, a moda e a arte cruzam fronteiras que podem confundir as intenções do criador, e atingem o espectador de formas, por vezes, muito mais inusitadas e fora de contexto, do que a proposta original.

No Brasil, nas décadas de 60 e início de 70, a roupa mais que a moda, ou a arte-indumentária, passou pelos objetos sensoriais e máscaras de Lygia Clark (1920–1988) e por Hélio Oiticica (1937–1980), em seus famosos e icônicos Parangolés. Para não deixar de citar Flávio de Carvalho, ao chocar com seu “New Look” de meias rendadas de bailarina, e saiote. Já nos anos 80, temos a manifestação artística de Bispo do Rosário (1911–1989) com suas roupas, capas e lençóis bordados no sanatório no final da década. Temos ainda Leonilson (1957–1993) também relacionando seus trabalhos com tecidos e bordados, representativos “objetos de moda” com a instalação na “Capela do Morumbi 1993”, onde cadeiras eram “vestidas” com camisas bordadas. Agora, possível de rever nesta nova edição da exposição (Capela do Morumbi – de 20/3 a 29/5).

Se analisarmos a mídia, os novos meios digitais e seus desdobramentos, vemos que a indústria cultural vem (re) tratando a sociedade como um espetáculo; e ela tem poder e autoridade para transformar eventos tão díspares e catastróficos como a guerra ou a miséria da vida cotidiana em simulacros de shows e games. Algo que causa grande “deslocamento” de sentidos para o usuário-consumidor-ator-personagem de sua representação simbólica, como tal, na sociedade contemporânea.

Com isso o Fashion-War, que aqui retratamos com as imagens relacionadas dos desfiles no mundo inteiro, revela lugares que falam e tratam de guerra no universo da moda, como Lakme Fashion Week in Mumbai, Australian Fashion (War) Week, War Fashion-Week Mexico, Apocaliptic Fashion-Portraits, Usa Nebrasca etc.; trazendo um prisma da negatividade do tema, das batalhas e das mortes, do estilo apocalíptico e da desesperançosa agonia de um viver “poluído” de conceitos destrutivos.

Ou também como vemos em editoriais de moda como o Trendland (French + NYC), Crazy Masks at Swedish Livraison Magazine, Vietnam War Accessories e War Heroe (Fashion 4 Fun), tendências ao trash humano, mas na linha do “campo de batalha” dos soldados, inocentes úteis, de poderes megalômanos que necessitam escoar seus armamentos (e venenos) produzidos como se fossem simples “jogos de war” ou “brinquedos de plástico pueris”, vendidos na Rua 25 de Março, na capital de São Paulo.

As imagens chocam, agridem e falam por si só. Analisá-las ou dissecá-las seria pura verborragia. Num mundo em que a hemorragia virou lugar-comum, prefiro o silêncio.

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A model displays a creation by designer Little Shilpa during the second day of Lakme Fashion Week in Mumbai, March 28, 2009. REUTERS/ Punit Paranjpe

Links

Referências

  •  KÖHLER, Carl. História do vestuário, Martins Fontes, 2001.
  • BARTHES, Roland. O sistema da moda, Edições 70, 1999.
  • VEILLON, Dominique. Moda e Guerra – Um retrato da França ocupada, Jorge Zahar Editor, 2004.
  • BOUCHER, François. História do vestuário no Ocidente, Cosac Naify, 2010.

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 Sobre Paula Valéria Andrade

Paula Valéria Andrade, carioca, viveu em São Paulo, Los Angeles e San Francisco. É poeta, escritora e designer teatral há 18 anos. Publicou em mais de 14 livros, entre eles IriS digiTaL Poesy(a) (2005, Escrituras Editora), seis livros infantis que receberam prêmios Jabuti, APCA, FNLIJ, White Ravens (Alemanha) e 'A Arte em Todos os Sentidos', teórico sobre arte e tecnologia multimídia (2000, Ed. do Brasil).  Inventou os SpraysPoéticos, com Rica P, intervenção urbana-poética, que passou pela Casa Cor 2007 (São Paulo), Fold Gallery (Londres), Dragão do Mar (Fortaleza) e Stencil Art Festival 2006 e 2007 (Melbourne, Austrália). Trabalha em mídia interativa e lançou, em 2004, uma  WebTV (www.fora.tv). paulagruber.blogspot.com