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Os excessos contemporâneos de Augusto de Campos

“A minha meta é a poesia.”
Augusto de Campos (O Anticrítico)

O poeta Augusto de Campos, hoje septuagenário (nasceu em 1931), é autor de uma obra vasta e importante, que inclui poemas, traduções e ensaios. Seu último livro de poesia, Não (123 páginas), saiu em 2003, pela Editora Perspectiva, com uma capa programaticamente kitsch, escolhida pelo próprio autor, na qual roubam a cena grandes letras prateadas, dessas que os best-sellers baratos, sobretudo os norte-americanos, costumam ostentar impunemente na tentativa (acredito) de atrair a atenção do leitor pouco exigente ou sonolento que percorre estantes de livros em farmácias e supermercados. Parece-me que o poeta brasileiro incorpora essa estética  sensacionalista para, num gesto irônico e desabusado, negá-la mais eficazmente, revendo-a com outros olhos e minando-a criticamente, visto que seu livro nada compartilha com os best-sellers, exceto a feiúra da capa. E a capa talvez seja seu melhor momento em termos de radicalidade poética, dentro da proposta do autor de excursionar, segundo entendo, pela junk art, arte feita de sucata, de cacarecos da indústria cultural, aderindo a uma estética francamente neobarroca (termo não muito preciso que significa aqui um certo exagero material).

Recentemente, intrigado com esse “não” prateado (a quarta capa exibe uma cortina rasgada de letras, ou um impertinente móbile colorido, e poderia ser classificada de psicodélica e anacrônica, o que confere um estranho sabor à leitura desse livro de 2003), decidi reler as duas outras coletâneas poéticas de Augusto de Campos, Viva Vaia (1979) e Despoesia (1994), e constatei que havia construído, sem me dar conta disso, uma imagem  falsa do poeta paulistano, vendo-o sob a máscara de um antigo “mártir da escrita”, à maneira de um torturado Flaubert (que precisava de muitas horas de trabalho para compor uma frase), por conseguinte como um autor que, movido por escrupuloso vagar, compõe e publica pouquíssimo. Ao mesmo tempo, verifiquei que essa é a imagem oficial de Augusto de Campos, autorizada por ele próprio, a julgar por certas declarações suas incluídas em seus livros, conforme discutirei.

A sua obra, então, me parecia pequena como a de um K.P. Kaváfis, digamos, mas agora constato que ela é ilusoriamente pequena (além de livros, o poeta lança cds, faz shows etc.) , como a de um Borges, cuja produção cabia inicialmente num só volume, o qual, com o passar dos anos, após o falecimento do autor, foi crescendo e se desdobrando em vários outros, de modo que hoje sua Obra Completa abarca vários volumes alentados. Embora o próprio Augusto de Campos já tenha afirmado que produzir 3 a 4 textos por ano é excessivo para os seus critérios, visto que “não há razão para pressa”, não me parece que sua obra poética seja realmente breve, conforme ele gosta de propalar quando fala de si mesmo (apresenta-se como “alguém que é tão breve e  produz tão pouco”), insinuando que adota  a subtração, o silêncio, em detrimento da adição, do excesso neobarroco e contemporâneo. Creio ser possível pôr em dúvida essa apreciação, citando um único fato: todas as coletâneas que Augusto publicou contêm, ao lado dos textos poéticos da sua própria lavra, várias páginas de tradução, de modo que, conforme comentarei mais à frente, versão e criação se confundem na sua obra. Diria que seus vários volumes de traduções (Ezra Pound, Joyce, Dante, Maiakóvski, Mallarmé, Blake, John Donne, Valéry, Hopkins, Rilke…) também fazem parte da sua produção poética, não há por que separar a tradução de poemas da criação poética propriamente dita. Se reunirmos tudo isso, constataremos que o número de poemas que ele assina como autor e/ou tradutor é considerável, até impressionante. Não é esse, porém, o maior dos equívocos que cercam a recepção da sua obra no Brasil.

O maior equívoco consiste em avaliar sua poesia considerando apenas as páginas impressas que compõem as três coletâneas citadas. Sua poesia há muito vem sendo divulgada por outros meios, além do livro. Um exemplo é o cd Poesia é Risco, de 1995, uma antologia poético-musical tão importante para entender seu percurso poético quanto os seus livros. Não por acaso, aliás, um cd-rom acompanha Não, prova de que, neste último lançamento duplo, a sua “poesia migrou para o universo digital animado – a poesia em cor e movimento, que sempre me fascinou e que agora está ao alcance dos meus dedos”1. Gostaria de sublinhar, nessa breve citação, o emprego do verbo “migrar”, que aponta para o caráter inconcluso ou protéico de muitos poemas do autor, aos quais ele costuma voltar com insistência, fazendo-os migrar de uma linguagem para outra ao preço de transformações orais, visuais etc., conforme novas tecnologias vão se tornando acessíveis e ele pode delas servir-se (da arcaica “letraset” ao cd e aos novos  programas de computador). Os poemas de Augusto de Campos, tanto os antigos quanto os novos, não repousam em paz nas páginas dos livros, mas, recauchutados ou reformulados, circulam irrequietos pelas mais diversas mídias: poster, site da Internet, além daquelas já citadas, como o cd, o palco…

A pioneira antologia Viva Vaia, por exemplo, trazia um compacto (disco) encartado, no qual Caetano Veloso interpretava dois poemas do autor, “dias dias dias” e “O pulsar”, além de uma canção de Lupicínio Rodrigues, “Volta”. (Não pude, porém, reouvir esse disco enquanto escrevia este artigo, o que lamento.) A última reedição de Viva Vaia, publicada em 2000, se modernizou e, ao invés de um vinil, trouxe um cd com 15 faixas, algumas inéditas, outras saídas do cd Poesia é Risco, que contém oralizações do próprio Augusto de Campos — ele assumiu, como se percebe, a voz de seus textos, não relegando a tarefa só a terceiros. A coletânea de 1994, Despoesia, não contém disco ou cd encartados, mas dá ensejo a outro tipo de migração poética, de que cito dois exemplos: reproduz, em cores, um curioso perfil de Maiakóski (assemelha-se a um membro da Família Buscapé) que já havia aparecido na coletânea anterior e propõe uma tradução para um texto de Khliébnikov que reapacerá, com o colorido espalhafatoso de um grafite urbano, na sua coletânea posterior, Não.

Os parágrafos anteriores deixam entrever um complexo diálogo entre o poema de Augusto de Campos e as mídias contemporâneas à disposição do poeta, por onde circulam a palavra, o verso e a imagem da sua obra  que se quer verbivocovisual. Um conhecido poema de Viva Vaia, “O pulsar” (musicado, como sabemos, por Caetano Veloso), impõe-se imediatamente ao olhar por seu visual engenhoso: numa folha dupla, escura, representando o cosmo, percebemos palavras brancas que encerram estrelas e esferas, as quais decrescem (as primeiras) e aumentam (as últimas) à medida que os versos se sucedem na página. Trata-se, é óbvio (não discutirei aqui sua oralização) de uma poesia verbovisual ambiciosa, mas, se nos concentrarmos no seu aspecto verbal apenas, o conteúdo da estrofe de sete linhas parecerá, à primeira vista, um momento neo-romântico de Augusto de Campos, vazado numa forma despretensiosa (essa forma me tocou na adolescência, mas hoje me deixa insensível): “Onde quer que você esteja/Em Marte ou Eldorado/Abra a janela e veja/O pulsar quase mudo/Abraço de anos luz etc.” Quando releio esse poema me dou conta de que Augusto nunca temeu ir “do luxo ao lixo”, para usar uma locução que lhe é cara (ela aparece, por exemplo, na apresentação de orelha de Despoesia, assinada pelo próprio poeta, como um programa estético). Sabemos que o concretista de São Paulo decretou o fim do verso e sobreviveu a esse decreto como, digamos, tropicalista. Agora ele parece se dedicar a escrever o verso depois do fim do verso, um verso paródico, um arremedo de verso, um “caldo ralo” poético. Se essa interpretação estiver correta, creio que poderemos louvar a coerência e o alcance do projeto estético de Augusto de Campos2. Os versos simples são contudo pretensiosos e buscam abrigo numa refinada forma visual, como se eles se ressentissem de sua íntima pobreza. Ou seja, temos aqui uma espécie de poesia-valise, que empacota numa mesma página duas linguagens (a estrofe verbal original e a sua tradução visual posterior), a fim de alcançar por esse meio (um luxo feito de lixo) uma expressão mais complexa, quiçá mais eficaz (dentro da perspectiva de unir o experimental com o neo-romantismo popular), que, entretanto, não logra ocultar uma fissura entre forma e fundo, uma dualidade, um descompasso entre a natureza do original e o neobarroquismo da tradução almejada, que é sempre, neste caso, enriquecimento externo, excesso material. (Talvez isso ocorra porque já não é possível escrever um verso depois do fim do verso sem esse distanciamento entre forma e fundo. Mas se o “defeito” do poema não puder ser justificado assim, talvez se possa aplicar a Augusto de Campos a sua própria recriminação contra Apollinaire, um poeta que, segundo afirmou, “acabou por deixar-se arrastar, na prática, para uma concepção no fundo simplista e superficial, ao querer limitar as conseqüências do ideograma poético à figuração do tema através de um artificioso arranjo tipográfico”3.)

Falei atrás de “luxo feito de lixo”, a descrição exata de um dos poemas mais importantes de Augusto de Campos, da fase áurea do fim do verso, “Luxo”, de 1965, no qual o diálogo entre o poema (neste caso, reduzido a duas palavras apenas: lixo e luxo) e a sua tradução visual (o lixo é escrito em letras graúdas, as quais são enchidas com outras letras bem menores, ostensivamente kitsch, que formam a palavra “luxo”, repetida numerosas vezes), parece perfeito, o fundo e a forma são indissociáveis e as duas palavras, o lixo e o luxo, reversíveis ou especulares, o luxo é um lixo e o lixo é um luxo. O momento culminante do poema é a enorme letra “x” de lixo, com braços erguidos nos quais está tatuada uma sucessão de “luxos” que se aproximam e se unem formando, no exato ponto de encontro, a inconcebível palavra “luxoxo”. É uma palavra inegavelmente feia que, entretanto, se harmoniza com o poema e lhe confere maior poder de denúncia, mas, apesar disso, continua sendo um termo que dificilmente algum outro poeta ousaria, parece-me, utilizar. Na reedição de Viva Vaia, de 2001, o poema tornou-se ainda mais impactante, na minha opinião, graças ao tom caramelado e enjoativo que banha as letras, as quais, na edição de 1979, eram mais sóbrias, vestidas tão-somente de preto e branco.

Falei de um poema bem-sucedido de Augusto de Campos, constituído apenas de duas palavras que se imbricam  com felicidade, lixo e luxo. Diria que os melhores poemas do autor (aqueles em que nossa nostalgia modernista de uma harmonia entre forma e fundo é plenamente satisfeita) são os estruturados sobre uma ou duas palavras, que se repetem especularmente ou se (con)fundem, prescindindo totalmente do verso. Estou convencido de que os grandes poemas do autor não necessitam do verso4, sobretudo os grandes poemas do livro Viva Vaia,  como o elegante e sóbrio “pluvial/fluvial” (o lado apolíneo de Augusto de Campos), feito do diálogo e cruzamento especular entre essas duas únicas palavras, que caem verticalmente (a primeira, várias vezes repetida, sugerindo a chuva) e depois escorrem horizontalmente (a segunda, também várias vezes repetida, o fluir do rio que as chuvas alimentam); ou, ainda, o belo “código”, um dos meus favoritos, composto dessa única palavra, escrita como um poderoso labirinto, uma casa-marca, uma casa-logotipo construída para nela nos perdermos cheios de admiração5. Também me parece notável o poema sem palavras “Pentahexagrama para John Cage”, onde as seis linhas do I Ching funcionam como uma pauta musical.

Mas Não, a nova coletânea de Augusto de Campos, é basicamente um livro de versos (tenho a nítica sensação de que são na verdade não-versos, alguns muito fracos, como os do poema infantil “arco-riso”), com uma ou outra exceção: veja-se o poema “desespelho”, composto dessa palavra duplicada especularmente, o poema que mais apreciei no novo livro (considero-o um belo emblema da dialética da melhor arte do autor, aquela que, como um espelho, confronta duas palavras, as quais se deformam, imbricando-se), ou o “não” prateado da capa, já comentado6. Viva Vaia me parece muitíssimo superior, inclusive supera Despoesia, quase todo composto de não-versos e glorificando a arte feita de cacarecos (“brilhar pra sempre/ brilhar como um farol/ brilhar com brilho eterno/ gente é pra brilhar/ que tudo mais/ vá pro inferno/ este/ é o meu slogan/ e o do sol” – aqui, conforme me foi sugerido por um leitor do poema, o comunista Maiakóvski é inesperadamente soterrado nas letras de Roberto e Erasmo Carlos e de Caetano Veloso), mas almejando ostentar um “luxoxo” verbovisual nem sempre convincente… Uma exceção é a versão computadorizada do “poema bomba”, uma explosão de letras que anunciam um princípio-fim da arte sob um fundo cósmico que arde.

Despoesia e Não também homenageiam o poeta norte-americano e.e. cummings, um dos “precursores” de Augusto de Campos. Confrontar essas duas homenagens poderá esclarecer eventuais pontos obscuros da discussão precedente e resumir numa espécie de síntese tudo o que foi dito a respeito do método poético de Augusto. No primeiro livro, o poema “so l(a (cummings)” contém um poema do mestre norte-americano acompanhado da sua tradução para o português, ambos impressos lado a lado, segundo aquela  estrutura especular tão cara ao poeta e tradutor brasileiro, já comentada atrás: o texto em inglês (constituído de poucas palavras  escritas imbricadas umas nas outras: loneliness/a leaf falls)mira a versão brasileira, igual e diferente, reflexo num espelho infiel (solitude/1 folha cai). O poema de cummings não é reproduzido tal como este foi publicado, com comovedora economia de meios, na abertura da coletânea 95 Poems, de 1950, mas se apresenta extravagantemente kitsch com suas grandes letras retorcidas que receberam uma aplicação de dois tons de verde – sem dúvida, o novo design do poema é também uma tradução visual dele, mas incomada, pois o termo kitsch, ou trash, se é apropriado para o resultado neobarroco alcançado por Augusto de Campos nas suas composições pós-concretas, como esta, não parece adequado à estética cummingsiana, muito mais sutil, sóbria e econômica, e, portanto, alheia aos excessos contemporâneros do poeta brasileiro. Confesso não entender muito bem a intenção dessa tradução dupla, ao mesmo tempo verbal e visual, que cria um novo produto, mais típico da junk art de Augusto do que da visual poetry de cummings.

O cummings de Não, homenageado no poema “pérolas para cummings”, recebe na página azulada em que vem impresso — “que m(o)tiv(o) (o) lev(o)u a viver j(o)gando pér(o)las para p(oo)c(o)s (sic)” — pequenos desenhos de pérolas no lugar de certas letras, procedimento que já aparecia, como sabemos, em “O pulsar”, onde esferas e estrelas substituíam vogais. O kitsch é tão serenamente utilizado em “pérolas para cummings” que quase me convenço de que devo ler essa homenagem como uma declaração contra cummings e uma afirmação da tendência atual da poesia impressa  de Augusto de Campos (entendo que a radicalidade do cd-rom deverá ser discutida à parte, em outro artigo): o apolíneo da fase pós-modernista e concreta, que gerou textos e images/stories sóbrios e elegantes, cedeu de vez lugar à fase do “luxoxo”, carnavalesca e dionisíaca, excessiva e, por isso mesmo, contemporânea e neobarroca. É assim que entendo o “não” prateado de Augusto de Campos. Um não a  e.e. cummings.


 Sobre Sérgio Medeiros

Poeta, tradutor e professor de literatura na UFSC. Seu poema longo, “Retrato totêmico de Claude Lévi-Strauss”, será publicado em outubro, nos EUA, na “Mandorla Magazine”, da Universidade de Illinois. Seu novo livro, “O sexo vegetal”, sairá no Brasil em breve.

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