Universidade Rennes 2-Alta Bretanha
A rock music se faz soar, guitarras elétricas, palavras e o garoto se contorcendo na cadência. Tamina olha para ele com repugnância: o garoto se torce com movimentos que imitam um adulto com ares de janota que, para ela, são obscenos. A moça baixa os olhos, para não ser obrigada a ver. Neste momento, o rapaz aumenta o som e começa a cantar junto. Um instante depois, quando Tamina direciona os olhos para ele, pergunta:
- — Por que você não canta ?
- — Eu não conheço essa música.
- — Como é que não conhece? Mas todo mundo conhece!1
Se a época em que vivemos se singulariza como uma civilização barulhenta, (muito) sonora, existem muitos pensadores contemporâneos que estigmatizam essa sonoridade total, em detrimento de algo todo musical. O sentido do rock2 é o padrão manifesto desta sociedade barulhenta, onipresente e dominante. Citado em epígrafo, o extrato de um livro de piadas. “Cidade em Epígrafo”, extrato de um livro de Milan Kundera, para rir a respeito, e depois esquecer, condensa perfeitamente as diferentes características ridicularizadas por vários outros escritores: obscenidade, ficção de Universidade, música para adolescentes, que deve ser ouvida, necessariamente, de forma muito ruidosa. Entretanto, tais preconceitos servem como apanágio para melômanos “clássicos”, no sentido de que sua melomania se inclina, exclusivamente, em direção à música clássica ou erudita. Entre uma tendência e outra, citando principalmente autores como Milan Kundera, Pascal Quignard ou Richard Millet,3 mesmo sem nos desdobrarmos em uma análise voltada para os sistemas de pensamento músico-literário destes literatos, podemos simplesmente questionar sua postura antirrock. Ela parece articular-se através de uma associação privilegiada e exlusiva entre a música clássica e a literatura. Tal afinidade, que nos parece eletiva, induz à permanência da ‘alta cultura’, ou cultura erudita, que está diretamente em oposição à cultura popular. De fato, a literatura dedicada ao rock — e que também consagra o gênero — se tornaria, segundo tais preceitos, uma paraliteratura, reconduzindo ao Great Divide4 entre a ‘alta’ e a ‘baixa’ cultura.
No entanto, à semelhança da musicologia que, por intermédio da obra dirigida por Jean-Jacques Nattiez, Música, uma enciclopédia para o Século XXI,5 pretende compreender o próprio objetivo da mesma dentro de sua unidade, tratar-se-ia de propor à literatura ‘melômana’ uma nova análise, pelo menos de uma parte da música que vem sendo ignorada há muito. De fato, além da multiplicidade de produções literárias que se mostram fascinadas pelo rock (tão charmosas quanto assustadoras), será necessário perceber que existe a possibilidade de um espaço literário que faça um cruzamento entre o rock e a literatura. É preciso tentar, portanto, colocar em perspectiva tais posturas antirrock, caracterizar seus laços íntimos entre o rock e a literatura e até lançar um manifesto de estar esta literatura voltada para o rock, trazendo à cena, além disso, dotados de um possível ‘corpus’, os ‘valores’ que ela possa ter, os mitos, temas e motivos recorrentes por ela captados e os gêneros, formas e estilos que adota.
Os preconceitos dos escritores melômanos ‘clássicos’: a postura ‘antirrock’ e a ‘musicalização’ da cultura
Símbolo da ocupação americana, ‘divertimento’6 e ‘descarrego’,7 música adolescente do ‘idílio rock’8 segundo Kundera, e fator que deturpa o ‘sentido da língua’, segundo Millet, o rock é, para estes escritores franceses, a trilha sonora manifesta da invasão anglo-saxã (Millet e Quignard) e da era do ‘todo cultural!’.9 Tanto sua obra de ficção quanto seus ensaios são testemunhas de uma postura antirrock bastante visível, em especial no que diz respeito aos ensaios. Tal postura se manifesta nos ‘romances’10 através de diferentes procedimentos: por exemplo, na caracterização dos personagens, na inclinação logogênica (fala rápida)11 da narração ou nos objetos simbólicos que nela aparecem, construindo um espaço romanceado. Nos escritos de Kundera, por exemplo, o rock é a ‘música eterna’ que faz parte da liberação sexual, algo que a acompanha até sua morte:
A história da música é mortal, mas a idiotice das guitarras é eterna. Atualmente, a música voltou a seu estado inicial, o estado pré-histórico.12
O primeiro argumento, levando-se em consideração tal postura ‘antirrock’, tem a ver com a tal música de vanguarda e, ao mesmo tempo, pré-histórica, uma música situada fora da história, que rompeu com todos os padrões históricos e teológicos da evolução musical. Tais preconceitos, em geral, nos chegam acompanhados de uma associação a ideias de selvageria, do enfraquecimento da arte e de uma música primitiva, tal qual ela se mostrava ‘nas tribos dos primeiros humanos’.13 Igualmente, no que diz respeito à ocupação americana, um objeto de afronta de gerações, entre Patrick Carrion e seu pai, entre duas visões distintas da música e da arte:
‘Essa música é só diversão. Pode se dedicar a ela, mas só enquanto estiver de férias.’
‘Eu não concordo, meu pai. A música nunca é apenas um divertimento.’
‘Bem, um descarrego, se você prefere assim. Essa música nem soa bem. Ela nem é divertida.’
Patrick fala alto:
‘Bom Deus, obrigado.’14
Descarrego, divertimento, seja lá o que for, pai e filho discutem valores estéticos, cada um elegendo uma categoria, sendo a postura deste último a seguinte: o rock não tem nada a ver com cultura, é um simples divertimento. Entretanto, bem mais que um conflito de gerações, ou um conflito estrutural do rock, este diálogo destaca a maneira como argumentos idênticos são utilizados tanto pelos detratores quanto pelos amantes do rock. Com efeito, tais ideias de exultação ou negação de qualquer redução estética estão no centro das definições originais do rock e, aqui, saem da boca do pai, estupefato ante a fascinação de seu filho. E dão testemunho da maneira como a língua comum a ambos parece desfazer-se. Na verdade, a língua inglesa se imiscui com o próprio texto, como se pudesse dar um significado maior a esta ‘ocupação’ não apenas cultural, mas idiomática também. A questão da língua está, algures, no centro da literatura de Richard Millet, para quem o ‘anglo-americano’ se tornou o ‘modelo fantasmático’15 de todas as línguas, inclusive da francesa. Surge, assim, um terceiro argumento: o rock é um dos maiores vetores16 deste modelo invasor.
Tal postura, portanto, está presente em múltiplas facetas, no rock. Ela traz à discussão essa falsa universalidade, essa propensão ao descarrego e à vulgaridade, mas também aponta para a propagação de um idioma invasor. Já podemos identificar uma resposta a tais argumentos. Com efeito, tornar o rock uma música que se encontra fora da história é igual a ‘passar batido’ pelos passos complexos de sua evolução musical, que se constitui (e sempre foi assim) de uma efervescência criativa marcada pelo alívio, como se pudesse causar uma ruptura com modelos preexistentes. O rock vem sendo constantemente trabalhado dentro dessa dinâmica histórica. E se o gênero ainda se proclama como algo voltado para o divertimento, isto frequentemente se dá através de uma marcha bastante consciente em direção à recusa da intelectualidade, ou a fuga da aparência de seriedade que, é possível, não cai bem como atrativo, por sua vez, a referências à literatura ou à arte.17
Entretanto, o preconceito de tais melômanos se cristaliza ao redor de um quarto argumento: que o rock não é nada mais que um barulho que se propaga como uma onda na vida de seus personagens, no espaço textual ou, mais ainda, dentro da sociedade.
Por uma defesa e ilustração da literatura rock
Esta representação do rock como música barulhenta e selvagem leva a dois postulados. O primeiro resulta de um sistema de valores que privilegia a ‘alta cultura’ — assombrada por seu declínio — e, assim sendo, uma ‘grande literatura’. Depois de T. S. Eliot e suas Notas por uma definição da cultura, houve o entrelaçamento dos meandros de uma reflexão dirigida, de um lado, para os trabalhos dos Cultural18 aplicando conceitos literários à sociologia e, de outro lado, para os defensores de uma ‘alta cultura’ que condena o ‘todo cultural’. Musicalmente, essa questão do sistema de valores continua marcada por uma dicotomia entre o que pode ser considerado alto e baixo, através da qual é possível substituir arte por divertimento, o autêntico pelo artificial e, no caso do rock, o alternativo pelo mainstream.19 E, apesar da propagação de discursos pós-modernistas que levam em conta tal polarização e os trabalhos de Simon Frith a respeito do valor da mesma, tal visão do rock como divertimento ou ‘subcultura’, geralmente, não leva a lugar algum.
Tal problemática da hierarquia dos valores artísticos, provinda dos trabalhos de Adorno e que constitui nossa modernidade, ainda não está resolvida. Mas, através do amálgama de diferentes trabalhos,20 emerge a hipótese de uma possível saída de tal estrutura hierarquizante, entre dois polos antitéticos. É nela que o termo “middlebrow”, empregado principalmente por Perry Meisel em seu The Myth of Popular Culture, traz uma nova perspectiva para aquilo que denomina “The Battle of the Brows: A History of High and Low”.21 Assim, sem querer aniquilar a questão do valor estético e a fronteira entre arte e divertimento, desdobra-se um espaço móvel onde seria possível, talvez, conjugar a lógica do divertimento com referências à cultura dita ‘séria’.22 É neste sentido — e esta será a última palavra a respeito desta questão espinhosa — que o trabalho de Lawrence W. Levine veio a explicitar o fim de uma cultura americana partilhada, após o Século XIX, um fantasma e tanto que foi expulso graças à constituição das hierarquias culturais, na virada daquele século.
O segundo postulado — em consequência a seu questionamento — é trabalhar em direção a um temor exacerbado no que diz respeito à musicalização percebida como barulhenta demais, que poderá vir a destruir o reinado do verbo sagrado, a saquear o próprio murmúrio de uma linguagem.23 E os três melômanos precedentes não são os únicos a questionar tal tendência à musicalização da sociedade, no sentido de que o rock e o ‘pop’ podem invadir o espaço do pensamento e da expressão. Encontramos, por exemplo, em Georges Steiner uma crítica a tal musicalização da cultura:
Os fatos que determinam esta ‘musicalização’ de nossa cultura, essa transferência, dos olhos para os ouvidos, do saber e de seu senso histórico (pois bem poucos ouvintes, mesmo os que levam este ouvir a sério, conseguem decifrar a partitura) são, relativamente, evidentes.24
Entretanto, mais ainda que o temor de uma musicalização — paradoxal, segundo todos estes melômanos — o que se pode perceber é uma recusa a ceder espaço ao barulho estridente do rock:
A ilha retinia com os gritos de uma música cheia de alaridos de guitarras elétricas. Um gravador tomba ao chão, em frente ao dormitório.25
Outros pensadores (Meschonnic, Steiner) afirmam temer que as pessoas possam ficar surdas, consequência de ouvir uma música tão alta e barulhenta, acreditando mesmo que ela pode criar um modelo próprio no que diz respeito até ao ato de pensar.26 Podemos até imaginar, como propõe Peter Szendy em Ecoute, uma história de nossas orelhas,27 as diferentes dietas da escuta, conforme caracterizadas por Adorno, não mais sob o signo do antagonismo, mas sob o de uma associação. Realmente, Szendy, em sua história da escuta engendrada pela existência bastante desconhecida de um ‘saber escutar’, traz à mente a tipologia adorniana nas atitudes do escutar28 que se encontra no pressuposto da obra. Encontraremos, assim, três atitudes por parte dos ouvintes: a do “expert”, a do “bom ouvinte” e a do “ouvinte diversificado”. Isso demonstra, graças à ópera Dom Giovanni, de Mozart, que “tais obras colocam em evidência uma concorrência dos ouvintes” e que “esta ópera faz com que possamos ouvir várias outras coisas”.29 Fica singularizada, assim, a possibilidade de uma escuta cheia de lacunas, flutuante, variada, sem que o ouvinte tenha receio, graças à égide da obra, de “entender tudo […] ou não entender nada”.
Do mesmo modo que Peter Szendy mostra interesse na convivência de tais regimes de escuta, é o caso de nos perguntarmos a respeito da possibilidade de uma literatura que não favoreça, unicamente, algo como a ‘alta escuta’, ou escuta séria. Não é nossa intenção dar a entender que ouvir rock não pode ser algo levado a sério, ser ouvido com atenção, mas sim que a literatura será, metaforicamente, dotada de várias escutas que concorrem entre si, apresentadas por Szendy.
Tal hipótese de um novo hipotexto musical sobre a literatura implicaria colocar em perspectiva a associação eletiva entre a música erudita e a literatura. Esta preferência original está, portanto, ligada, como vimos, ao alto coeficiente de valor estético do qual a música erudita está dotada. No entanto, por um lado, esta questão de seu valor permanece sendo, eminentemente, um problema30 e, por outro lado, é possível encontrar, dentro de cada gênero artístico, uma escala de valores internos fortemente polarizada. Foi para isto que Georges Steiner chamou nossa atenção, ao expor a ideia de uma ‘metacultura’ própria a cada gênero ou subgênero musical:
No entanto, […] nós lidamos aqui com uma forma de conhecimento, com um conjunto de referências muito grande e dinâmico para constituir uma ‘metacultura’. […] O ‘folk’ e o ‘pop’, o rock e a ‘música tradicional’, têm, cada um destes gêneros, sua história e seu ciclo de lendas. […] Eles têm contas a ajustar com seus velhos mestres e seus rebeldes, com aqueles que os traíram e com seus altos sacerdotes. Tanto quanto a cultura clássica, os mundos do ‘jazz’ ou do ‘rock’n’nroll’ possuem graus de iniciação que vão desde uma vaga empatia, passam pelo iniciante — nível latino do quadrante solar — e chegam à erudição sem complacência do escolástico.31
É possível, portanto, temer uma hibridização fecunda ente o rock e a literatura, perceber a possibilidade de uma competição entre escutas diferentes, no que diz respeito à literatura. Tal qual o romance de Don DeLillo, Great Jones Street32 agudamente penetrado pelo barulho da cidade e pelos ecos da música, o rock se propaga dentro da esfera literária. Portanto, em contraste com a intimidade a que já nos referimos, entre a música clássica e a literatura, é preciso que nos proponhamos, paradoxalmente, a perceber o barulho do rock como um tema que tem suas ressonâncias agudas no texto literário.
Assim, tal imagem do barulho pode ser concebida sob uma perspectiva tripla: o barulho através da materialidade do som e da música dentro do texto, o barulho como ressonância de um imaginário musical e cultural e, enfim — gerado pelos dois primeiros — o barulho como um ‘processus’ parasitário que, então, pode revitalizar a literatura. As duas primeiras considerações produzem ecos em diferentes estudos músico-literários, levados a cabo dentro de outros gêneros de literatura melômana (especialmente a música clássica e o ‘jazz’). A última diz respeito à apropriação do rock, tanto em sua transposição para dentro do texto como seu deslocamento da esfera literária, além dos gêneros canônicos do romance ou do ensaio.
Fazendo surgir um sistema de correspondências e referenciais, a partir de suportes textuais diferentes, pode-se perceber o barulho como um motivo capaz de introduzir uma reflexão axiológica que possa articular o rock e a literatura. Na verdade, mesmo que o rock seja desacreditado, por parte de alguns escritores ‘clássicos’, o tema ‘barulho’ nos permite argumentar se não é possível elevá-lo ao nível de um paradigma que possa construir um modelo.
Unidade de musicologia, unidade dos estudos músico-literários: definição de um campo de estudo
Após compreender, e mesmo escutar33 as partes que se mostram hostis ao rock, que o confinam dentro de uma cultura popular, dá para fazer o contrário, ou seja, perceber uma profunda intimidade entre o rock e a literatura, de maneira inversa a tais postulados. Assim, será possível mencionar as perspectivas unificadoras, segundo a conclusão de Musiques, uma enciclopédia para o Século XXI,34 obra dirigida por Jean-Jacques Nattiez. Defendida por uma nova unidade da musicologia face a seu objeto,35 tal obra pode abrir, por analogia, o caminho através do qual será possível alcançar uma unidade dos estudos músico-literários. Com efeito, diferentemente dos países anglo-saxões, os estudos músico-literários franceses parecem, de forma implícita, reconduzir os precedentes postulados a um ‘status’ de herdeiros de uma estética que valoriza, por sua vez, a complexidade musical e um alto coeficiente de ‘literatura’. O artigo “Literatura & Música”, de Elisabeth Rallo Ditche, do “livro branco” da SFLGC36 está inserido nesta perspectiva, omitindo com frequência mencionar as poucas análises que colocam literatura e música ‘popular’ como oponentes. Fazendo um balanço deste campo, o artigo restringe as fronteiras dos trabalhos músico-literários à articulação literatura e música clássica séria, ao mesmo tempo em que convida a “uma exploração dos domínios literários e musicais que se encontram fora da Europa”.37
Ficamos, assim, face a uma ausência dupla: o objeto da pesquisa está oculto e seu próprio vácuo não é questionado. Frente a essa dupla omissão, a “literatura do rock” não pode existir nem tampouco prevalecer, sem fundamento teórico algum. Talvez seja esta vacuidade mesma que dá tanta força às críticas dos melômanos que fustigam o rock. Apesar de alguns estudos pontuais,38 nenhuma análise transversal e sintética faz uma análise de tal noção, frequentemente (e muito) empregada. Assim, é necessário esboçar um panorama crítico das obras e de seus múltiplos autores, que pertencem a este vasto e móvel espaço, ou que possam cair em tal categoria. Não se trata, aqui, de traçar uma tipologia exaustiva, mas de relembrar, de forma breve, as características de seus diferentes componentes: os romances que têm como pano de fundo a cultura do rock, os ensaios críticos sobre o gênero, os ensaios dos próprios artistas do rock e os “clássicos” da biblioteca do rock.
Em primeiro lugar, perceberemos que os romances influenciados pelo rock têm, frequentemente, uma visão eufórica do mesmo, fazendo parte, mesmo sem consciência disso, de uma reavaliação do gênero. Assim, toda uma geração contemporânea de escritores — e não apenas os anglo-saxônicos — encontra-se fortemente marcada por esta música. O rock é o tema da obra, participa de sua trama, encontra-se no âmago da mesma, cria uma atmosfera e encontra seu lugar no cotidiano dos personagens, em livros como High Fidelity ou Juliet, Naked, de Nick Hornby, ou mesmo em The Dwarves Of Death, de Jonathan Coe. À parte estes dois romances, podemos citar, entre outros, Great Jones Street, de Don DeLillo, Less Than Zero, de Bret Easton Ellis, The Ground Beneath Her Feet, de Salman Rushdie, Heroes, de Ray Loriga, Little Heroes, de Norman Spinrad39 e Um Jovem Muito Importante, de Eugène Savitzkaya.
Em segundo lugar vêm os escritos críticos do rock, que pertencem, em sua maioria, à esfera jornalística. Críticas de discos, grupos e concertos, feitas por um número incalculável de pessoas, formam um subgênero da crítica do rock e, a partir daí, se tornam bem conhecidas.40 A proximidade e a porosidade entre a crítica do rock e os movimentos do New Journalism41 bem como do jornalismo tipo ‘gonzo’,42 ilustram um aspecto literário de tais crônicas. No entanto, o que se pode distinguir neste gênero é a maneira pela qual algumas destas crônicas fogem do campo jornalístico e entram em um ‘processus’ que leva à publicação literária. Pensamos, aqui, nos escritos de gente como Lester Bangs, publicados postumamente em duas grandes compilações,43 ou Hellfire, de Nick Tosches, ou mesmo The Dark Stuff, de Nick Kent.44 Do mesmo modo, certos críticos de rock viram sua atividade jornalística desembocar em uma produção romanesca, à semelhança de Nick Tosches ou Chuck Klosterman.
Em terceiro lugar, temos os escritos dos próprios artistas do rock. E aqui é possível perceber que as letras que compõem para suas músicas são bem mais interessantes que seus textos literários. Na verdade, muitos são os que, além de seus trabalhos como letristas, se lançaram ao trabalho como escritores, trabalhos estes estritamente literários: Bob Dylan, Jim Morrisson, Lou Reed, Patti Smith, John Lennon e Leonard Cohen (este tendo sido reconhecido como escritor antes de surgir como song-writer).
Enfim, parece ser necessário constituir uma última categoria de obras, a das obras que antecederam o surgimento do rock, que podem ser consideradas como antepassadas diretas deste movimento e de sua literatura. De Rimbaud à geração Beat, de William Blake a Aldous Huxley, é possível encontrar, nos trabalhos destes autores, todas as grandes referências utilizadas, por sua vez, pelos músicos do rock e por seus escritores. Mesmo que essa proposta possa soar arbitrária, ela é necessária, no sentido de formar uma rede intertextual dos clássicos do rock, às quais os textos literários e as letras das músicas fazem referências, o tempo todo.
Só podemos nos prender, para não estender demais nosso estudo, a alguns exemplos que se manifestam dentro de um ‘corpus’ vastíssimo. Entretanto, visto o “polimorfismo”45 de tal exemplo, daremos algumas sugestões de leituras que convergem entre si, tanto formais quanto temáticas, estilistas e axiológicas.
Tratados estéticos, temas e figuras da literatura do rock: algumas pistas para uma possível poética futura
Tratados de escritos: jogos intertextuais, oralidade, a passagem do fragmentado ao monumental
Na maioria dos textos consagrados ao rock, o primeiro tempo desta hibridização da leitura46 pode brotar da reinscrição referencial do rock dentro do texto, sob diversas formas. Essa hibridização se refere à referência, ou à citação de um álbum, de uma música ou de alguma letra (epígrafo, dedicatória, inserção no corpo do texto ou dentro de um diálogo, título da música ou até uma alusão).47 Entretanto, é bom reparar que nos textos que se afastam dessa dimensão referencial — que predomina, em uma grande maioria dos romances e ensaios — podem-se observar correspondências estilísticas diferentes. Com efeito, dentro deste ‘corpus’, extenso e proteifórmico, as transgressões léxicas, as compilações e as convergências sintáticas servem como fundamento para uma estética comum, que se desdobra além das questões genéricas e linguísticas.
A coleção e as preferências são símbolo do amadorismo, que vem da fascinação exacerbada pelo rock — a exemplo dos protagonistas de High Fidelity. De fato, os textos fazem parte desta inclinação no sentido em que enumeram, através de listas de preferência e acumulações, suas referências ao rock. O rock se caracteriza, igualmente, por sua simplicidade e sua eficácia com respeito aos aspectos percussivos e provocadores, obedecendo a fórmulas que podem ser percebidas como vulgares. É possível mergulhar em um estudo linguístico aprofundado para mostrar tal inclinação à licensiosidade, à vulgaridade e à provocação, através dos ensaios de Bangs e dos escritos de Hunter S. Thompson. Essa propensão a praguejar está, frequentemente, associada ao uso de neologismos, cuja meta é desacreditar um academicismo pomposo, ou um alvo preferencial dessas zombarias ácidas e violentas, a respeito das quais podemos oferecer três exemplos, tirados das crônicas de Bangs “prolixidade eletro-tecnocrática”,48 “some codifying crypto-academic49 “Dylan’s demonology”.50
Enfim, a ruptura sintática aparenta ser uma estrutura manifestada neste espaço literário. Característica dos escritos ‘bangsianos’ ou ‘thompsianos’, ela se singulariza pela capacidade que tem a frase de concluir, ou derrubar todo seu sistema semântico dentro de um rodeio final. Igualmente, está manifesta uma tendência à oralidade, que pode ser perfeitamente reconhecida no praguejar, na repreensão ou mesmo na multiplicidade das frases nominais nas quais se ocultam os textos. Tais rupturas, com as quais, frequentemente, são terminadas frases bastante breves, também são enriquecidas por uma infinidade de digressões e incisões. Além disso, numerosos textos deixam clara tal ruptura ao procurar modificar a potência do texto utilizando a tipografia maiúscula, no intuito de ilustrar, assim, um aumento na sonoridade. Esta ruptura tipográfica pode ser significante, levando em consideração o ponto de vista da música, como quando Lester Bangs deixa algo em branco ([…]) em seus escritos, em especial quando se referia ao punk. E já se observou bem como a essência da música, presa da fulgurância e do radicalismo, procura abrir um espaço para todos os meios possíveis, dentro do texto literário:
Okay, you tell me what punk rock is — in this space […]
See, I told you so. Oh, but I’ll show you the roots of punk.51
Paradoxalmente, frente à sua própria desenvoltura, a sintaxe também pode tender em direção a uma simplicidade que soa a enunciação, que não procura se explicar, recuperando, assim, uma dimensão poética. Por exemplo, as classificações em Hornby, as crônicas, em Dylan e Bangs, ou mesmo as microrrecitações, em Loriga, levam a crer que estes escritores tomaram a decisão consciente de tornar seus textos fragmentários.
Esta rejeição a uma totalidade que signifique alguma coisa é, também, a marca da crônica pontual do jornalista, que não traça o projeto de uma obra, apenas termina por publicar uma compilação, nela recompondo os diferentes fragmentos. Se tal recusa de traçar um projeto não for específica apenas à escrita consagrada ao rock, a escrita em geral pode acabar por tomar uma aparência genérica que merece ser questionada. Com efeito, vários romances, autoficções, ensaios romanceados, que possam estar integrados a este espaço literário, brotaram originalmente de artigos, crônicas e relatórios jornalísticos. Portanto, a maneira pela qual tais artigos defendem uma tese, ou demonstram alguma pretensão, ou se mostram inclusive arrebatadores, sugere que sejam publicados como coletâneas — alguns destes escritos jornalísticos — ou como uma obra reconfigurada e reescrita, para que aparentem alguma coerência, ou novidade.
Tal constatação induz a uma dupla reflexão sobre o estatuto da obra. A liberdade da forma jornalística, inicialmente escolhida, dá lugar, geralmente, a um trabalho de composição, a um gesto mais literário de produção e publicação de toda uma obra. A forma jornalísitica parece estar sobrecarregada pela multiplicidade, por uma profusão de artigos e escritos que acabam por dotar a obra de uma dimensão labiríntica, que precisa ser retrabalhada. Assim, a recusa inicial de um projeto de escrita encontra-se, finalmente, em contradição com uma escrita que tende a se alimentar dela própria, arrastando seu autor em direção a uma forma mais coerente, portanto, mais literária. A proposta, originalmente jornalística, que não ousa se afirmar como romance, recoloca, de outra maneira, a questão a respeito da postura do escritor. Também faz eco ao movimento do New Journalism e ao grande número de escritores-jornalistas, nos Estados Unidos, a partir dos anos 70, com Tom Wolfe, Hunter S. Thompson e Lester Bangs à frente.
Figuras e temas
Além disso, outras duas não variáveis, ou seja, a representação dos concertos e o uso de figuras típicas (o adolescente, a estrela do rock, o músico, o erudito ou o velho nostálgico), são temas integrantes das temáticas que acompanham, se entrecruzam, se desenvolvem ou condensam as marcas musicais presentes na narração ou no discurso. A primeira destas não variáveis temáticas é uma tendência à revolta e à revolução.52 A melancolia e a solidão se impõem, como temas recorrentes. Dá para o leitor perceber como o personagem, ainda mais no que diz respeito ao rock star, pode se recolher a uma solidão que, ao mesmo tempo que pode protegê-lo dos espinhos da glória, também pode destruí-lo dentro de seu ambiente social. A solidão, aqui, é uma forma de marginalidade a que pode levar o espírito do rock, uma atitude, marcada pelo sexo e pelas drogas, que se mostra transgressiva e libertária, mas também simplificadora e ambiciosa. Tal manifestação de atitude e de espírito está presente na determinação da comunidade (ideal ou social). A temática permanente da festa, marcada pelos excessos, pode, em certo sentido, servir como base fundadora de uma comunidade, a partir de um modo de vida alternativo. Enfim, negação e niilismo irrigam todo o pensamento dos personagens, no que diz respeito à sua recusa pelas condutas estabelecidas e pelas normas políticas, sociais e culturais.
Pois, se o rock é, frequentemente, definido como uma música de revolta, revolucionária mesmo, tal redução não pode ter validade dentro de outro contexto. Com efeito, desde sua origem — os primeiros ‘rock’n’rollers’ dos anos 1950 — e, sobretudo, quando vestiu as roupas das causas violentas dos ‘sixties’, através de grupos surgidos no início dos anos 70, até a explosão punk, parece que é a recusa a se tornar algo mais sério e aceitar as normas estabelecidas que vem servindo como guia para o rock enquanto movimento. Pode se tratar da recusa a uma norma caracterizada ou ideologizada, mas também de toda e qualquer generalização ou banalização que, atualmente, seja preponderante. Tal desenvoltura, marcada por recursos que são próprios do cinismo e da ironia, é um dos temas preferidos dos escritores, dos romancistas que tendem à crítica. Esta é a marca destes pesonagens romanceados, em sua maior parte figuras de losers — às vezes, magníficos.
A inclinação romanceada de tal desenvoltura não se condensa, pura e simplesmente, na figura dos losers. Ela também está presente no afã do escritor em propor um aspecto fragmentário de suas obras: fragmentação da narrativa, dos personagens (o aspecto quase esquizofrênico de alguns). Este último — aproximando-se das teorias da pós-modernidade de Lyotard ou Freitag — se insere perfeitamente na recusa da totalidade, da linearidade e da possibilidade de uma leitura global da obra. Assim, tal distanciamento irônico da seriedade, este rir de e recusar a totalidade, proposta pela desarmonia das categorias (estéticas, narracionais, culturais, poéticas), nos dão uma pista importante para fazer uma pesquisa. Não é preciso mais que insistir nesta dimensão quase lúdica da escrita e lembrar que, para os primeiros comentaristas do rock, tal crítica não era mais que uma diversão.53
Entre a continuidade e a ruptura. Em direção à legitimação da literatura rock.
Esta recusa à norma se encontra em perpétua construção, embora o rock não possa diminuir a si próprio, de forma mecânica, dentro de uma postura tipo “valor-refúgio”: por um lado, tal denominação é grande demais para lhe assegurar uma identidade real e, por outro, deixar-se condensar por sua representação conduzirá à sua desnaturalização. O que se pode observar, portanto, é uma marginalização, que propõe sua própria ética alternativa e seus valores de identidade, mas que se encontra dentro de uma dinâmica de perpétua recolocação de seus próprios modelos, ao se mostrar como nada mais que um princípio único, ou seja, a recusa à institucionalização e ao academicismo.
Se o rock exerce fascinação nos escritores, é porque ele se constrói através de mitos e representações simbólicas que não podem ser dissociadas deste tipo de música. Escrever (sobre) o rock implica o escritor confrontar ele mesmo com o ritmo, representá-lo fielmente, revesti-lo de forma tal a distanciá-lo o mais possível da destruição. Só que tal apropriação de uma mitologia própria a este estilo musical poderá ser contrabalanceada pela vontade de projetar o rock sobre mitos literários, propriamente ditos. Dá para perceber bem como, ao redor desta questão do imaginário, se articula dentro de tais textos um jogo de trocas entre mitos literários e “mitos musicais”.54 O escritor tem, pois, o poder de participar da fundação desta mitologia, a exemplo de outras obras melômanas.
Além disso, outros elementos encontram sua defesa nesta continuidade entre as literaturas melômanas: a composição romanesca e o sistema dos personagens, bem como a dupla inclinação meloformal e logógena do objeto ‘rock’. No entanto, a questão da generalidade permite que nos perguntemos se há alguma vantagem na continuidade entre tal literatura consagrada ao rock e outras literaturas melômanas.55 Com efeito, diferentes subgêneros clássicos, como o romance melômano, o romance do músico, o romance iniciático, a biografia do músico, o romance negro, a ficção científica ou mesmo a crônica jornalística podem se transformar, dentro do universo do rock, adquirindo diversas nuanças e modulações. Assim, a ruptura imediatamente associada ao adjetivo ‘rock’ seria bem mais fantástica que real.
Tendo em vista todos esses subgêneros romanceados, é possível distinguir muito bem a multiplicidade dos gêneros que podem ser apropriados por uma literatura consagrada ao rock. Em cada um deles, o rock surge como um expediente essencial da intriga, mas não mais propõe uma ruptura com o quadro genérico preexistente. Ele se torna, assim, um dos maiores elementos da composição do romance, sem afastar de sua presença o modelo escolhido, insconsciente ou voluntariamente, pelo autor, modelo que se conjuga, frequentemente, com o encanto do romance do músico. Entretanto, se tal multiplicidade de gêneros apresenta um problema, no que diz respeito à modelização da “literatura rock”, um “subgênero ideal” pode tomar a forma de uma crônica.
Nas ciências da informação, fala-se do barulho em relação às respostas não pertinentes popostas por um sistema interrogatório sustentado por uma base de dados a serem recolhidos e estudados. Tentamos, pois, demonstrar que é possível traçar o modelo de um espaço pertinente para a pesquisa dos estudos músico-literários. Restam dois obstáculos, que dizem respeito a tal exercício. Sempre foi difícil, dentro deste quadro, traçar uma história que seja suficiente para territorializar o rock e o ‘corpus’ literário que ele coloca em evidência. E convém, igualmente, evitar fixar uma dinâmica para tal pesquisa, não dando pistas prévias para sua investigação.
De uma literatura melômana dedicada ao rock: barulho ensurdecedor ou ressonância fecunda
Assim, apurando a dialética entre a literarização do rock e a influência elétrica sobre tal literatura, a questão do barulho56 parece propícia igualmente a unificar os grandes questionamentos poéticos, axiológicos e estéticos, a partir de tal “metapesquisa” a respeito da existência e da pertinência da noção de uma literatura rock. Entretanto, mesmo que este campo — ainda ignorado, apesar de contestado — necessite de uma reflexão sobre as próprias possibilidades de sua existência, procuramos aqui abrir um caminho para as grandes associações históricas entre a grande música e a grande literatura, de um lado, e a música popular e a paraliteratura, de outro. Sem fazer da marginalidade do rock um fantasma frente a um pretenso academicismo literário, nossa intenção foi desvendar sua fecunda ressonância dentro da literatura, tendo em vista uma proposta de alargar e unificar o ‘corpus’ músico-literário no terreno dos estudos comparativos.
Leia mais:
- De Franco aos Rolling Stones
- John Lennon sobrevive à barbárie
- Nota sobre “Mannish boy” de Muddy Waters
- A canção é forte – “Love is strong”, dos Rolling Stones, e os anos 1990
Notas:
1. KUNDERA, Milan. Um livro para rir e esquecer. Paris: Gallimard, 1984, p. 241.
2. O rock deve ser aqui percebido dentro de sua denominação mais ampla, após o rock’n’roll dos anos 50, até o ‘pop’ atual. Apesar de tudo, devemos estar plenamente conscientes da imensidão do campo musical aqui coberto, o qual dificilmente poderá ser historicizado, dentro do quadro apresentado.
3. Nós nos restringiremos, aqui, a estes três autores, mas existem outros, que podem ser consultados (Burgess…).
4. LINBERG Ulf, GUODMUNDSSON Gestur, MICHELSEN Morten, WEISETHAUNET Hans. Rock Criticism from the Beginning, Amusers, Bruisers & Cool-Headed Cruisers. New York: Peter Lang, 2005, p. 25.
5. Ss. dir. NATTIEZ Jean-Jacques. Músicas, uma enciclopédia para o Século XXI, a Unidade da Música (v. 5). Paris: Actes Sud, 2007.
6. QUIGNARD, Pascal. A Ocupação Americana. Paris: Seuil, 1994, p. 150.
8. Este termo é utilizado para designar a sexta parte de Um livro para rir e esquecer, no momento em que a heroína Tamina se encontra aprisionada na ilha das crianças. KUNDERA, Milan. Um livro para rir e esquecer. cit., pp. 241-72.
9. MILLET, Richard. O Sentimento da Língua. Paris: La Table ronde, 1993, p. 267. “a civilização americana amontoou um número tão grande de ‘gadgets’ já caducados que a deusa deste mundo começa a parecer, para eles […] um grande armazém, cheio de esqueletos de abutres e instrumentos incompletos […]. As almas, com efeito, tomaram […] a aparência de colagens pobres, de ‘comics’, de sequências de filmes, de sacolas de discos, de anúncios.” QUIGNARD, Pascal. A Ocupação Americana. cit., pp.120-1.
10. Evitamos o termo “romance” tendo em vista o estatuto complexo e ambíguo, que se encontra, de forma genérica, nos escritos de Milan Kundera.
11. Para definir a inclinação logogênica, fazemos referência a Timothée Picard, caracterizando o modelo das três inclinações romanescas definidas por Frédéric Sounac: “O primeiro dos três tipos de inclinações evocadas, qualificado de “logogênico”, diz respeito a obras dentro das quais as palavras e a fábula possam evocar a música, mas sem que essa se ponha a falar, propriamente dito, a respeito do estilo e da forma da obra. […] a segunda inclinação, “melógena”, responde ao desejo de “musicalizar” a língua por meio das assonâncias, das aliterações, do trabalho rítmico, dos efeitos de repetição, etc. […] a terceira inclinação, dita “melofórmica”, consiste em querer adaptar à literatura um procedimento composicional que é característico da música: fuga e contraponto, ‘leitmotiv’, tema e variação, série dodecafônica, etc.” PICARD, Timothée. “A Música e o Indizível no imaginário europeu: proposta de síntese”, http://www.vox-poetica.com/sflgc/biblio/ picard.html, página consultada em 22/10/2010.
12. KUNDERA, Milan. Um livro para rir e esquecer. cit., p. 258.
13. QUIGNARD, Pascal. A ocupação americana. cit., p. 52.
15. MILLET, Richard. O Sentimento da Língua. cit., p. 212.
17. Não saberíamos, aqui, como voltar atrás sobre os jogos de mudanças múltiplas entre o rock e as esferas artísticas e culturais, mas podemos rever os passos, por exemplo, do Lipstick Traces (entre suas várias obras) de Greil Marcus, que mostra interesse pelos laços simbólicos entre as vanguardas do início do século XX (o futurismo, o DADA, os surrealistas, os situacionistas e outros letrismos) e a explosão punk. MARCUS, Greil. Lipstick Traces, Uma história secreta do século Vinte (A secret history of the twentieth century). Paris: Editions Allia, 1999 (1989). Podemos, igualmente, citar duas obras que trazem à baila as reciclagens literárias operadas pela música (especialmente pelo rock): MALFETTES, Stéphane. As palavras retorcidas, ou o que os músicos atuais fazem da literatura. Paris: Editions Mélanie Sétéun, 2000SS e URY-PETESCH, Jean-Philippe (dir.). A intertextualidade lírica, Reciclagens literárias e cinematográficas operadas pela canção. Rosières-en-Haye, Camion Blanc, 2010.
18. É possível encontrar, na obra de Dick Hebdige, a melhor ilustração desta apreensão das “subculturas” jovens: HEBDIGE, Dick. Subcultura, um sentido do estilo (Subculture. The Meaning of Style). Paris: La Découverte, 2008.
19. Cf. MARTEL, Frédéric. Mainstream, Averiguando a cultura que agrada a todo mundo. Paris: Flammarion, 2010.
20. Cf. LEVINE, Lawrence W. Alta cultura, Baixa cultura, a emergência das hierarquias culturais nos Estados Unidos (Highbrow/Lowbrow. The Emergence of Cultural Hierarchy in America). Paris: La Découverte, 2010 (1988); e MEISEL, Perry. The Myth of Popular Culture (from Dante to Dylan). Oxford: Wiley-Blackwell, 2010.
21. MEISEL, Perry. The Myth of Popular Culture, “The Battle of the Brows: A History of High and Low”. cit., pp. 3-52.
22. O rock, aliás, pode se constituir, frequentemente, pela tensão entre uma prática ‘lowbrow’ e um movimento artístico ‘highbrow’.
23. Millet afirma ter emprestado esta expressão de Barthes, mas não se rocorda se o leu em alguma ocasião. MILLET, Richard. O Sentimento da Língua. cit., p.100.
24. STEINER, George. Dentro do castelo do Barba-Azul, Notas para uma redefinição da cultura (em: Bluebeard’ Castle, Some Notes towards the Redefinition of Culture), Paris: Gallimard, 1995 (1971), p. 135.
25. KUNDERA, Milan. Um Livro para rir e esquecer. cit., p. 267.
26. “A filosofia, quando toma sua própria história através daquela do pensamento, ou a psicanálise, quando ouve a si mesma e quando a toma por um escutar da literatura, contribuiu para a surdez da época. Assim como os baladeiros criaram um povo formado por surdos, os saberes contemporâneos que deram os fundamentos a tanto barulho nos ouvidos tornaram surda a modernidade da modernidade.”, MESCHONNIC, Henri. Para abandonar o Pós-moderno. Paris: Klincksieck, 2009, p. 168.
27. SZENDY, Peter. Ecoute. Uma história de nossos ouvidos. Paris: Les Editions de Minuit, 2000.
30. Pensamos aqui no debate entre Boulez e Foucault, tal qual Jean-Jacques Nattiez na conclusão do último tomo de sua enciclopédia.
31. STEINER George. Dentro do castelo do Barba-Azul. cit., p. 133.
32. DELILLO Don, Great Jones Street. London: Picador, 1992.
33. Tal escuta ocorre sob a égide da responsabilidade de ouvir, colocada em evidência por Peter Szendy.
34. Ss. dir. NATTIEZ Jean-Jacques. Músicas, uma enciclopédia para o século XXI, cit.
35. Esta questão da unidade não é, claro, uma prerrogativa, mas procede de um movimento dialético onde a contestação parece ser uma espécie de arrebatamento face às dificuldades inerentes a esta perspectiva, donde se chega a tal conclusão. Dela resulta a questão da unidade da musicologia, tendo em vista a criação de uma musicologia geral, sem fixar nenhum limite nas investigações, mas guiando-se por ferramentas e métodos comuns — compreendendo, é claro, que unidade não quer dizer totalidade.
36. RALLO DITCHE Elisabeth, “Literatura e música” em Anne Tomiche e Karl Ziegler (dir.), A Pesquisa na Literatura geral e comparada na França em 2007, Balanço e Perspectivas, Presses Universitaires de Valenciennes, 2007, pp.103-8.
38. Não podemos nos prender aqui, de maneira cansativa, a esta vacuidade das ferramentas críticas que se interessam por esta hibridização do rock e da literatura.
39. HORNBY Nick, High Fidelity. Londres: Penguin Books, 1995; HORNBY Nick, Juliet, Naked, Londres: Penguin Books, 2010; COE Jonathan, The Dwarves of Death. Londres: Penguin Books, 2001; DELILLO Don, Great Jones Street, op. cit.; RUSHDIE Salman, The Ground beneath her Feet. Londres: Vintage, 2000; LORIGA Ray, Héroes. Barcelona: Debolsillo, 2003; SPINRAD Norman, Little Heroes. Londres: Grafton, 1989; SAVITSKAYA Eugène, Um jovem muito gordo. Paris: Les Éditions de Minuit, 1978. Fazemos menção, também, à recente criação da coleção “Solo”, edições A Palavra e o Resto, cuja proposta são textos curtos, a partir da escuta e do sentido de um dado álbum.
40. Encontraremos, em Rock Criticism from the Beginning, a síntese mais completa deste campo da crítica do rock. LINBERG Ulf e outros, Rock Criticism from the Beginning, op. cit.
41. O New Journalism é um movimento proposto por Tom Wolfe em 1973, na coletânea The New Journalism, que se singulariza pelo emprego de técnicas literárias dentro da escrita jornalística, manifestamente aproximando-a da escrita romanceada. Cf. WOLFE Tom, The New Journalism. Londres: Picador, 1973.
42. O jornalismo ‘gonzo’, praticado, em especial, por Hunter S. Thompson, insiste na ultrassubjetividade do mesmo, por bater na tecla dos prismas que influenciam uma deformação na visão do jornalismo, evidenciando os elementos exteriores ou interiores ao mesmo, dando destaque, em especial, aos estupefacientes.
43. BANGS Lester, Psychotic Reactions and Carburator Dung. Londres: Serpent’s Tail, 1988 e BANGS Lester, Mainlines, Blood Feasts and Bad Taste. Londres: Serpent’s Tail, 2003.
44. KENT Nick, The Dark Stuff. Cambridge: Da Capo Press, 2002; TOSCHES Nick, Hellfire. Londres: Penguin Books, 2008.
45. Tal termo foi utilizado por Fabien Hein: “Rock e literatura assemelham-se a relatórios simétricos desconhecidos. Eu gostaria de trazer à baila aquilo que o rock fez à literatura e aquilo que a literatura fez ao rock, prestando atenção nas práticas concretas de escrita e de publicação, que […] são o fundamento daquilo a que se permite chamar de uma literatura rock […]. Esta comunicação visaria a explorar o caráter polimorfo de tal literatura específica”. HEIN Fabien, O mundo do rock e da literatura, 16 de novembro de 2005, CRILCQ, Université Laval.
46. Este emprego da noção de hibridização não tem nada de evidente. Ele é especialmente utilizado por Aude Locatelli em seu trabalho sobre as “ músico-ficções”: “Este tipo de citação nos convida a sublinhar que a ‘escrita-jazz’, a qual tentei caracterizar, é, necessariamente, uma escrita híbrida.”, LOCATELLI Aude, “Literatura e Jazz”, Literatura e música, URL: http://www.fabula.org/colloques/document1285.php, página consultada em 06/06/2010. Ela prossegue nesta reflexão sobre a hibridização e a transposição intersemiótica com a ideia de que o jazz dá vida à escrita, que se trata de uma música imediatista, subterrânea, cheia de vivacidade, ilustrada por noções de dinamismo e impulso. Tal ‘processus’ de transposição intersemiótica dá vida à literatura. Ao ser lido, o romance se torna um objeto músico-literário dinâmico. Dá para perceber muito bem o estatuto híbrido das obras músico-literárias (hibridização aqui colocada em relação com os jogos de intercâmbio) e a dimensão, necessariamente, metafórica a respeito da heterogeneidade de ambos os objetos considerados. O escritor está condenado a utilizar um material que é seu e de ninguém mais. Podemos, assim, nos questionar a respeito da música e sua dupla alteração neste sentido, ou seja, ela é música ou literatura?
47. Este recurso está exemplificado em romancistas como Hornby ou Easton Ellis, mas também em críticos como Bangs ou Marcus.
48. BANGS Lester, Mainlines, Blood Feasts and Bad Taste, op. cit., p. 167.
52. Cf. SPINRAD Norman, Little Heroes, op. cit.
53. “Criticism is Entertainment”. LINBERG Ulf e outrosi, Rock Criticism from the Beginning, op. cit., p. 70.
54. O romance The Ground Beneath Her Feet, de Salman Rushdie, é um exemplo deste jogo de retomada e mudança entre o mito órfico e a figura do rock star.
55. Pensamos, aqui, no trabalho de Aude Locatelli sobre as “músico-ficções” ou, ainda, em todos os estudos a respeito da literatura melômana “clássica”, especialmente a de Françoise Escal, Hoa Hoï Vuong ou Claude Coste.
56. Tal motivo pode, igualmente, questionar as transferências nocionais de ritmo e de harmonia, que saem do rock em direção ao texto literário, e também na materialização do som dentro do romance. Isto só pode ser feito por intermédio do jogo intertextual — reinscrição de fragmentos provindos de outra obra e outro sistema semiótico — mas que questiona, igualmente, os diversos procedimentos literários da materialização de uma atmosfera sonora (neste caso, do barulhento rock) no texto.