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Lugares contemporâneos da poesia: suicídio ou revolução

O latino Horácio afirmou há dois mil anos que a poesia pretendia “instruir ou deleitar” [“aut prodesse aut delectare”]. A primeira afirmação se compreende porque, na Antiguidade, a poesia tinha quase tantos usos quanto a prosa tem hoje (prosa que então não existia como a conhecemos): teologia, narrativas, teatro, filosofia e manuais técnicos (agricultura, por exemplo) já foram escritos em versos. A poesia não tem mais tais usos “instrutivos”. Tampouco os “deleitosos”, pois estes, hoje, respondem pelo nome de entretenimento. E a poesia não faz parte da cultura de massa (ao contrário da prosa).

Se os antigos sabiam bem para que servia ou o que queria a poesia, ao que tudo indica, nós não sabemos mais. Eppur si muove. Pois apesar de tudo, ainda se faz poesia, e muita poesia (talvez em demasia) hoje – em todo o mundo. Por que e para que, ninguém parece ter muita certeza. O que paradoxalmente não impede sua criação. Mas talvez comprometa sua criatividade.

Sibila propôs um questionário sobre o tema a uma série de poetas contemporâneos de várias línguas e de vários países (exceto o Brasil, para evitar part pris e parcialidades), com colocações bastante diretas sobre o fazer poético na atualidade, para rastrear algumas perspectivas sobre as bases atuais desse fazer e para que, ao cabo, elas possam, talvez, enriquecer o panorama da própria poesia brasileira.

© Clemens Kalischer (Nova York, 1947)
© Clemens Kalischer (Nova York, 1947)

Aqui se esboçaum primeiro cenário sintético do quadro emergido até agora, a partir das respostas a uma das perguntas, a primeira (o questionário da série é constituído de dez indagações). O escopo desta nota é, então, o de destacar as respostas a “o que você espera ao escrever poesia?”.

Não tirarei conclusões, mas faço um pequeno comentário: as respostas a esta questão são múltiplas, multiformes, e conseguem por vezes surpreender, talvez porque ainda se pautem pela perspectiva da prospecção, da “vitalidade”, ou no mínimo do não falar “poetês”, como destaca Marco Giovenale. Porque fogem, talvez, de uma das “utilidades” da poesia atual (para voltar a Horácio): circular em circuitos mais ou menos institucionais, atrás do respaldo compadresco dos pares. Ao fazê-lo, podem prescindir de uma forma qualquer de “autoridade” para lhes atribuir “valor”, e dizer coisas como: [escrevo] “porque me dá alegria”; “porque me conecta à memória da língua”; “porque me aprofunda em meu próprio empenho”.

O chinês Yi Sha: “Escrever poesia por si só já é um ato que me traz muita alegria e satisfação. Não consigo imaginar outra alegria maior. O meu destino está fadado a escrever poesia“. A francesa Liliane Giraudon: “Escrever poesia é conectar-me com a memória da língua e captar o mundo”.

O italiano Marco Giovenale: “Que não fale ‘poetês’ e que o leitor não espere encontrar ali o autor, mas o texto em si e os seus objetos. Eventos, coisas, matéria, relações, dúvidas. Não ego”. A inglesa Maggie O’Sullivan: “Aprofundar meu próprio empenho” . O francês Jean-jacques Viton: “Simplesmente uma resposta necessária a esta pergunta” .

O chinês Yu Jian: “Espero que o mundo conheça Yu Jian como um ser de linguagem”. O chileno Martín Gubbins: “Desvelar os códigos que estão por trás da linguagem do poder político e econômico, das comunicações e da publicidade; da estética e da poesia convencional”; Gubbins – em algum aspecto – inscreve-se na tradição horaciana de “instruir”. O norte-americano John Yau: “Quero escrever algo que nunca li e que nunca ouvi antes”.

A argentina de 20 anos Tina Quintana (autora de poemas hoje incomumente diretos): “Ao escrever poesia não espero nada, nem sequer o momento de libertar-me de minhas obrigações mundanas. Posso estar dentro de um ônibus quando as palavras vêm à minha cabeça e, então, eu tenho que anotá-las. Como resultado espero que se alivie um pouco essa contradição da alma de que falava Schelling, que se sintetize em uma forma concreta e sensível algo dessa loucura interior tão em conflito com as formas toscas da vida nesse mundo”.

O paraguaio Cristino Bogado (chamando a atenção para a realidade das ruas, contra a poesia decorativa): “O que se passa na rua, o que vejo passar nela é obra minha, sempre. Por isso não apenas me interessa, mas também me preocupa”. A boliviana Rery Maldonado: “Sobreviver. Aprendi que com ela sou capaz de ver o mundo, o poder, essa construção imediata e vigiada da história, e manter o espírito intacto. Ajuda-me a travar com nobreza minhas próprias batalhas”.

O uruguaio Eduardo Milán: “Não espero nenhum novo horizonte, nem para mim, nem para a poesia. O que acredito irá acontecer é que a poesia, tal como se encontra agora, quer dizer, como uma multiplicidade de possibilidades formais que vai sempre em busca da solução mais fácil (o previsível), acabará entrando a atuar no espaço de uma situação diferente, a qual poderá colocar a poesia no limite de sua descaracterização. Explico: uma coisa é a poesia-limite, a antipoesia, a não poesia, outra é a descaracterização. A poesia perde sua razão de ser, ao jogar no espaço do capital. Não existe poesia capitalista. Em termos pessoais, o que espero é manter-me no que faço sempre. Escrevo para mim e porque aprendi a fazer isto”.

O russo Tarássik Petritchenka (evocando certa noção do justo, da “justa medida” dos antigos): “O desejo de dar o que deve ser dado. Ao ouvir poesia, sentimos a necessidade de escrevê-la. Ela deve ser escrita”. Petritchenka, indagado sobre o efeito mais forte que um poema poderia causar, responde: “O suicídio. A revolução”. O exato oposto da poesia mediana (verbal ou não) meio institucionalizada (descaracterizada, como observa Milán), que não instrui nem deleita (muito menos suicida ou revoluciona). “Quousque tandem?”, como diria outro latino (Cícero [“Até quando?”]).

 

Leia a série completa

 

Lugares contemporâneos da poesia

Concepção do projeto: Alcir Pécora e Régis Bonvicino
Texto introdutório: Alcir Pécora
Realização: Régis Bonvicino, com a colaboração de Aurora Bernardini e Charles Bernstein

Há reiterados momentos do contemporâneo em que a prática da poesia se parece exatamente apenas uma prática, uma empiria, uma rotina. Faz-se poesia porque poesia é feita. Edita-se poesia porque livros de poesia são editados e foram editados. Por que não continuar editando-os?

Mas qual o significado da arte, quando a arte se reduz a empiria, procedimento habitual que não problematiza os seus meios? Que deixa de inventar os seus próprios fins? Que não desconfia de sua forma conhecida, nem arrisca um lance contra si, inconformada?

Para tentar saber o que pensam a respeito da poesia que produzem alguns dos mais destacados poetas estrangeiros em ação hoje, a Revista Sibila propôs-lhes algumas perguntas simples, primitivas até – silly questions! –, cujo escopo principal é deixar de tomar como naturais ou óbvios os automatismos da prática.

Trata-se de saber dos poetas, da maneira mais direta possível, o que ainda os move a ler, a escrever e a lançar um livro de poesia – ou, mais genericamente, a publicar poesia, seja qual for o suporte.

A condição de, por ora, ouvir apenas os estrangeiros é estratégica aqui. Convém evitar respostas que possam ser neutralizadas a priori por posicionamentos desconfiados de vizinhança.

Leitura de poesia, esforço de poesia e publicação de poesia: nada disso é compulsório, nada disso se explica de antemão. Tudo o que se faz, nesse domínio, é fruto de exigência apenas imaginária. Nada obriga, a não ser a obrigação que se inventa para si.

A revista Sibila quer saber que invenção é essa. Ou seja: o que os poetas ainda podem imaginar para a prática que os define como poetas.

Contemporary places for poetry

There are plenty of moments in our current life when the practice of poetry seems exactly a practice, something empirical, a kind of routine. One makes poetry because poetry has been made. One publishes poetry because books of poetry are published and were published, why not going on publishing them?

But what meaning does art have when art is reduced to empiricism, the habitual procedure which doesn’t discuss its means? Which doesn’t any longer make up its own aims? Which is not suspicious of its usual form, nor runs the risk of a move against itself, unresigned?

Trying to know what some of the most distinguished foreign poets in action today think about their own poetry, Sibila proposed some very simple questions, some naïve questions – silly questions! –, whose principal aim is no longer to consider as natural ( as obvious) the automatisms of the poetical practice.

Sibila asks the poets to tell in the more direct way what still moves them to read, to write, to publish a book of poetry – or, more generically, to publish poetry, in whatever support.

The choice, for the moment, to listen only to foreign poets’ voice is a strategic one. It’s better to avoid answers which would be neutralized a priori, due to suspicious neighbourly attitudes.

Reading poetry, straining to write poetry, publishing poetry: not at all compulsory, all this, not at all explainable in advance. Everything you do in this domain is the result of mere imaginary exacting. Nothing obliges you, unless the obligation you invent yourself, for yourself. Sibila wants to know what kind of invention is that. Id est: what poets may still make up for the practice which defines them as poets.


 Sobre Régis Bonvicino

Poeta, autor, entre outros de Até agora (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo), e diretor da revista Sibila.